O legado de Joćo Guedes

Notķcias 16/01/2025 15:54

As melhores coisas da vida são assim, verdadeiros presentes inesperados que chegam quando menos esperamos. Na véspera de Natal, fui até a chácara Capim Branco, pertencia aos meus avós maternos, em busca de informações sobre como chegar à Fazenda Encantado para buscar mudas de plantas. Um senhor, que estava trabalhando, parou de usar a roçadeira e assim que me apresentei. Ele me explicou o caminho e, como se fôssemos velhos conhecidos, começamos uma conversa envolvente. O solo ancestral, a majestosa mangueira e o rego d’água, mesmo seco, presenciaram meu encantamento. A cada palavra e relato de suas experiências, percebia o magnetismo, a potência dos trabalhos realizados por Seu João Guedes. Fui tocado por suas histórias a ponto de me comprometer, ali a registrá-las por escrito, inspirada pelo que acabara de ouvir.

Monumento do Cofre foi projetado e idealizado por João Guedes, resgatando um importante símbolo da história da cidade de Baliza-GO. Segundo ele, desde a fundação da cidade, o cofre fazia parte do patrimônio municipal, utilizado pela prefeitura para armazenar suas economias, os pagamentos e outros documentos oficiais. Após anos de uso, foi descartado no córrego da ponte, onde permaneceu por 21 anos.

Guedes relembra o esforço e ajuda que recebeu para recuperar e resgatar o cofre: "Reuni cinco amigos – Otávio, Frazão, Werley e Bastião Farofa – para tirá-lo de lá e trazê-lo de volta. Ele representa um patrimônio histórico e não podia ser deixado abandonado." Segundo sua estimativa, o cofre chegou à cidade por volta de 1930 ou 1935. Ele relembra sua importância como guardião dos tempos áureos da economia local. Muito mais do que um objeto de valor financeiro, ele testemunhou memórias de encontros românticos, momentos de lazer, celebração e conversar regadas a cachaça. "A gente achou que precisava restaurá-lo para se tornar uma lembrança bonita e preservada para todos. Não podíamos deixar essa memória morrer, então restauramos e fizemos um monumento para que todos pudessem ver" ressalta Guedes.

 

Hoje, o monumento é um ponto de referência atrai turistas e moradores, que o fotografam como símbolo de identidade cultural. Guedes enfatiza a impressionante robustez, o tamanho e peso da peça: "Não se faz mais um cofre assim, hoje em dia; ele pesa cerca de 500 quilos ou mais." O cofre repousa sobre uma base de alvenaria construída pelo ex-vereador Frazão Ferreira, enquanto Guedes auxiliava-o como ajudante na obra. Ele recorda os esforços para levantar a peça: "Corri atrás de talha, cabo de aço e guincho, e com união conseguimos colocar o cofre no lugar (praça central)."

Na placa do monumento, imortaliza o esforço desse visionário com a inscrição lê-se: "Projeto de um cidadão sonhador – velho Guedes. Esta é uma celebração do idealismo e da dedicação de um homem autodidata talentoso, um mestre na arte de contar histórias, que desafiou as barreiras de uma sociedade patriarcal, branca e rigidamente hierarquizada. Com habilidade e sabedoria, ele deixou sua marca na história, desempenhando um papel fundamental na preservação da memória coletiva de Baliza. O monumento do cofre foi inaugurado em 2007.

Vanney Neves, atual secretário de Cultura em Torixoréu-MT  destaca  que: "João Guedes, o guardião da história de Baliza! Um homem simples, visionário e obstinado pela preservação da memória e da identidade cultural do povo balizense. A sua coragem, luta, determinação e perseverança é uma marca inabalável de amor à sua terra, reconhecendo traços de gente, que foi historicamente marginalizada pelos setores castos da sociedade. A voz de João Guedes é a palavra potente, que permanece resistindo ao descaso, o revérbero contemporâneo de homens e mulheres destemidos, que, fizeram história, labutando na busca de preciosos sonhos submersos, emergindo de léguas de fundura o brilho originário da coroa de Baliza, a “Rainha do Araguaia”, em seu marco histórico, assim como ficou conhecida nos idos de sua época de ascensão econômica e social, com vultos refletindo nos grandes centros do país".

O projeto de construção do monumento da bomba (máquina utilizada para enviar ar aos garimpeiros no fundo do rio), foi inspirado nas memórias afetivas de João Guedes, é um símbolo de sua dedicação à preservação da história dos garimpeiros de Baliza. Quando criança, Guedes via capacetes e máquinas abandonadas nos quintais da cidade, o que o motivou a resgatar e valorizar esse patrimônio material e imaterial. Em suas palavras, ele conta como recebeu essa relíquia: "O homem me prometeu: ‘Você nos ajuda na política, e se ganharmos, te dou aquela máquina’. Lutamos com unhas e dentes, vencemos, e ele me entregou."

Com entusiasmo, Guedes destaca a importância de homenagear os garimpeiros que construíram a cidade: “Se não corrermos atrás para preservar nossa história, ela se perderá. O monumento mostra como Baliza foi fundada pelos garimpeiros de mergulho, garantindo que nossa memória permaneça viva. ” O obelisco, chamado Tempo do Garimpo, é composto por um capacete de escafandro, duas pedras redondas com argolas usadas como peso (de 30 e 35 quilos) para manter o mergulhador submerso (no fundo do Rio Araguaia) enquanto trabalhava mandando cascalho, e uma máquina de manivelas que bombeava o ar. A placa que ornamenta a obra celebra o nome de múltiplos trabalhadores desde garimpeiros, donos e fornecedores de garimpos, navegadores e parteira, incluindo Manoel Jorge, dono da máquina.

No entanto, Guedes lamenta o vandalismo, depredação e o roubo do cristal de três quilos que adornava a obra: “Era um cristal belíssimo. Quebraram o vidro e levaram o cristal, e não conseguimos outro para substituir. ” A luta de João Guedes vai além da construção desses três monumentos. Ele defende que a história dos garimpeiros seja definitivamente reconhecida, estudada e valorizada, ocupando seu devido espaço/lugar na historiografia local e regional. Ao tornar visível o legado desses trabalhadores, frequentemente excluídos dos registros oficiais, ele atravessa as barreiras da opressão, submissão, analfabetismo, academicismo e do racismo. O monumento da máquina foi inaugurado em 1º de maio de 2009, junto com a feira da agricultura familiar.

 

João Guedes, homem musculoso, de estatua mediana, retinto, de falar solta e articulada, relata com orgulho o projeto da estátua em homenagem ao garimpeiro José Rodrigues de Siqueira, um ícone da cidade de Baliza. Ele conta que compartilhou seu sonho com a administração municipal: "Queria colocar uma estátua de um garimpeiro na praça." Com o apoio da prefeita (Fernanda), do ex-secretário de saúde e do ex-prefeito Jânio, a ideia ganhou forma. Após uma conversa no gabinete, a prefeita autorizou a obra, enfatizando que a homenagem deveria ‘acontecer em vida’, para que o homenageado pudesse presenciar a inauguração. Guedes elaborou o projeto, fornecendo detalhes sobre como a estátua deveria ser feita, e a prefeitura executou tudo conforme o planejado.

A inauguração ocorreu durante a Festa dos Filhos Ausentes em 2018, com a presença de uma multidão e diversas autoridades. Guedes lembra com emoção o momento: "Seu Zé estava lá, sentado ao lado de dona Maria, e quando a fita foi cortada, ele disse me diz: que aquela seria uma das noites mais felizes da sua vida." O reconhecimento tocou profundamente a família de José Rodrigues de Siqueira, cuja filha expressou sua gratidão com um abraço caloroso.

José Rodrigues chegou a Baliza aos nove anos, vindo de Xavantina. Garimpeiro destemido, desbravou a região e contribuiu significativamente para a economia local. Foi construtor de estradas, pontes, moradias e currais, e colaborou com renomados fornecedores de garimpo, como Virgílio Gomes, Alcy Barreto, Durães, e Moacyr Catalão. Sua trajetória inclui 45 anos mergulhando no Rio Araguaia, tornando-o um profundo conhecedor da história, hidrografia e da economia local.

 

Guedes destaca que a homenagem aos garimpeiros foi pioneira em Baliza, apesar de o município ter tido cinco prefeitos e inúmeros vereadores ligados ao garimpo, sem que nenhumas iniciativas semelhantes fossem realizadas. O monumento rapidamente se tornou um dos mais fotografados da cidade, e até mesmo a faculdade do campus Pontal do Araguaia visitou a estátua diversas vezes, entrevistando “Seu Zé” para registrar suas memórias.

 Por Gilda Portella- multiartista, sacerdotisa de umbanda e mestranda do PPGECCO- UFMT   

 


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